quinta-feira, 29 de setembro de 2016

~O Caçador de Silêncios~

"Nunca mais traia a Santa Quietude", dizia o bilhete que encontrara à cabeceira da cama. Alguém havia entrado ali na calada da noite e a deixado inteiramente calada. Ela não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Sentia que seus lábios estavam dormentes, e mais quentes e úmidos que o normal. Podia sentir um gosto estranho e um cheiro que já conhecia, mas não conseguia identificar. Saiu de casa ainda desorientada, de camisola, tentando gritar por socorro, mas sem sucesso. Foi então que se lembrou da Muda do Lago da Prata. Se alguém ali tinha a solução deste mistério, só poderia ser ela. Mas teria de esperar amanhecer... 

A Muda do Lago da Prata é uma senhora que há anos passa as horas de seus dias sentada sobre o banco de concreto em frente à lagoa dos patos, no parque central. Ninguém sabe seu nome, afinal, ela não fala e nem tem qualquer documento. Perto dela, sempre - e somente! - o jardineiro do parque. Se entreolhavam raramente em meio a encaradas frustradas, pois enquanto um fitava, o outro estava de cabeça baixa. Sempre que alguém tentava chegar perto deles, ele batia rapidamente em retirada; e quando não estava ao lado dela, estava a arrancar, às vezes em fúria, as mudas que começavam a dar frutos... Aquele cheiro que a nova muda sentiu em sua casa se mesclava, de alguma maneira, ao da velha muda do lago, e ela saberia dizer, a seu modo, de onde aquilo vinha. 

Com lábios carnudos e sempre machucados - talvez por viverem cerrados - a velha muda sinalizou um "fora!" bruscamente com o braço quando a moça se aproximou. Aquele não era um bom dia pra um papo, fosse da maneira que fosse. Mas a nova muda não desistiria tão fácil. E se não dava para ser por ela, que fosse então pelo jardineiro.

Ao se aproximar, o cheiro já denunciou mais da metade do mistério. Era ele o autor do beijo de rapina. Como ele conseguira invadir sua casa e por que fizera isso eram apenas duas das incontáveis questões que lhe rondavam a mente. Percebendo estar a um passo de ser pego, correu e se enfiou na mata. A nova muda voltou-se para a velha em face de desespero, e viu se repetir diante dela, freneticamente, o gesto com o braço. Só então entendeu que não estava sendo expulsa: aquilo era um sinal de indicação. A muda apontava para outra muda, uma pequena planta cercada por arame farpado, a única protegida por ali. Tal zelo era algo altamente representativo, que só podia servir pra esconder algum tesouro ou segredo.

Formava-se ali um elo regado de mistérios. E no centro deste estranho "Triângulo das ber-Mudas" só poderia estar a chave. Cavando desesperadamente ao redor e dentro da cerca, ela viu surgirem alguns papéis. Todos traziam a mesma frase que encontrara em seu criado-mudo, exceto um. Naquele enterrado mais a fundo, havia o trecho mais pesado de sua última conversa com o ex-marido, no dia em que encerraram o casamento ali mesmo naquele parque, num movimentado domingo. Eram palavras duras, das quais ela só se deu conta naquele momento em que perdeu a capacidade de proferi-las... Ainda atônita, viu a Muda do Lago sinalizar a ela que não parasse de cavar. E a quase um braço de distância, enfim a chave. Antiga, enorme e enferrujada, que só poderia abrir portas quase medievais; mas naquela cidade tão pequena, ela não conseguia se lembrar de nenhum lugar assim, tão antigo. 

O cheiro se acentuara após tanta terra revirada, e havia uma gosma incolor impregnada por todo o objeto. Reparou que a velha tinha os olhos fixos na trilha que levava à mata. Como um indicativo, se embrenhou na rota de fuga do jardineiro em busca de um calabouço, um mausoléu ou até mesmo uma cabana suspensa em árvores. E não demorou muito para uma pedra derrubá-la em cima de uma porta camuflada. A chave encaixou e rodou perfeitamente, sem mesmo provocar ruídos. Lá dentro, luzes de lampiões revelavam um sofisticado laboratório de druidas. Inúmeras mudas de plantas, de tamanhos e fases variados, cercadas de papéis. Todas traziam o mantra que ela recebera, e também uma frase triste e ferina. Cada uma regada com uma fonte própria, e cercada de tubos de ensaio.

"Plante suas piores palavras, e assim elas serão mudas!". A frase dita de forma rude quebrou o silêncio local, dominado pelas águas correntes, e eventuais bolhas que explodiam dentro dos tubos. Era o jardineiro, que carregava uma xícara nas mãos. "A seiva cala, e o fruto que nasce cura", concluiu o homem. Ela reconhecera em tantas frases momentos que presenciara no parque. Brigas, ofensas, mágoas, ressentimentos revelados em gritos de puro ódio. E só então compreendeu por que a cidade a cada dia ficava mais quieta: o jardineiro caçava Silêncios! Porque nunca conseguiu cassar as próprias palavras, cassou as alheias até que todas juntas pudessem enfim suplantar as dele, e assim foi... A mistura de todas as seivas o matou instantaneamente. E ele fez questão de partir no meio das duas imensas árvores ali presentes. Uma não trazia um fruto ou uma folha sequer; e sob ela, um verdadeiro diário enterrado. A outra, repleta de frutos e folhas, escondia incontáveis resmas de papel em branco. Era a longa jornada do jardineiro e sua língua mordaz contra talvez um século de retidão, que nunca foi capaz de curá-lo. E de quem seria, então, toda aquela integridade e lisura? E por que tantas chances de cura para quem de nada precisava ser curado? Estava claro que tamanha Ausência não podia ter outro dono...

Um a um, os mudos da cidade adentravam a gruta e tomavam posse novamente de suas palavras, exceto as que foram cassadas e enterradas. A cura estava em não permitir mais que se traísse tão gravemente a Santa Quietude... E a única que não estava ali era a Muda do Lago da Prata. Ela seguia incólume e serena em seu canto. A nova ex-muda, compadecida de sua idade avançada, pensou que o caminho fosse pesado demais e levou-lhe um fruto, o maior que havia em sua árvore. Com um sorriso franco e aliviado, a velha delicadamente o tomou em suas mãos e o arremessou no lago, o mais longe que pôde. 

A grande cobiça do jardineiro, que a ele nunca serviu, só reforçou nela o que aparentemente já nasceu sabendo. Ele tentou se calar de vez, mas nunca pôde. Já ela, decidiu não se curar, pois entendeu que o Silêncio é, e sempre haverá de ser o melhor remédio...

Nenhum comentário:

Postar um comentário