~Enfim, a Era de AQUARIUS~
(atenção: contém spoiler)
Quem me conhece bem, sabe de algumas coisas: gosto de TEXTO! Não basta ter um bom argumento, o filme tem de ser bem contado em monólogos/diálogos profundos e marcantes - aqueles que dizem muito com tão pouco. Além disso, adoro encontrar também textos em forma de imagens, principalmente sutis; e gosto que tudo isso esteja diluído em um elenco capaz de reproduzir magistralmente o conjunto. Por fim, não sou nenhuma crítica profissional, então, vão perdoando aí qualquer coisa a seguir...
Meu mês chegou, e logo de saída já me trouxe de presente de quase-aniversário a estreia de Aquarius - um filme que nasce numa ebulitiva e emblemática festa de aniversário em 1980. Um filme, aliás, cuja polêmica estreou primeiro, extrapolando a pantalha... É óbvio que o veria de qualquer forma, mas impossível negar que minha ansiedade e curiosidade foram amplificadas desde o tapete vermelho em Cannes. E hoje vejo reunido tudo aquilo de que mais gosto num espaço só: Aquarius é uma obra completa!
Primeiramente (Fora, Temer!), um formato pouco visto, mas já utilizado pelo cineasta pernambucano, Kleber Mendonça Filho; que é um filme em capítulos. Três partes compõem o todo, centrado em Clara (Sonia Braga) e sua resistência em deixar o apartamento - o único ainda habitado - no edifício homônimo. Os porquês dessa resistência são o argumento em si, e cada tentativa de fazê-la mudar de ideia, tendo como réplica as suas condições (a ela tão básicas e indiscutíveis), compreende textos e interpretações indefectíveis, numa trama costurada a mão e com riqueza de detalhes.
Clara é escritora especializada em música, e responsável por uma obra sobre Villa-Lobos. No aniversário de 70 anos da tia Lúcia, ao invés do tradicional "Parabéns", ao piano foi tocada a canção do compositor, chamada "Feliz Aniversário". No nordeste, a expressa maioria das pessoas celebra aniversários ao som dessa canção, cuja letra diz que "seja a casa onde moras a morada da alegria e o refúgio da ventura"... Anos se passam, e o apartamento é o mesmo. Até alguns móveis. Ou seja, "a morada da alegria e refúgio da ventura" é justo o que Clara pretende conservar com unhas e dentes numa guerra quase solitária onde até seus filhos encaram como pura teimosia dessa "mistura de velhinha com criança". Um espaço que já abriga os netos, mas ainda repleto de discos de vinil e outras antiguidades; de álbuns de família, de cheiros e lembranças de todos os gêneros, que parece importar mesmo só pra ela e para poucos, como sua fiel escudeira, Ladjane (Zoraide Coleto); seu irmão, Antônio (Buda Lira); sua cunhada, Fátima (Paula de Renor); o sobrinho, Tomás (Pedro Queiroz); e as amigas de gafieira e de vida - a advogada Cleide (Carla Ribas), e Letícia (Arly Arnaud), a que lhe indicou um garoto de programa, e depois ficou com ciúmes.
A gafieira, mais uma tradição bem nordestina, tem outro papel peculiar na história. Sair pra beber, dançar e paquerar é quase que vital. E é após uma saída assim que Clara conhece um homem que a repele tão logo descobre que ela não tem uma mama, extirpada por conta de um câncer. A distância física que ele toma dela de imediato e o desconcerto na voz são um tapa na cara do machismo que só vê a mulher como um corpo, e que deve ser/estar perfeito sempre. Numa sutileza incrível, escancara o que é preciso escancarar.
E enquanto dá alguns tapas no machismo, o filme simplesmente sapateia na cara da Ganância - sempre a frente das relações familiares, e de tudo o mais que ela precisar passar por cima. E é o embate entre Clara e o jovem Diego (Humberto Carrão), engenheiro que celebra seu primeiro projeto após uma temporada estudando "business" nos Estados Unidos, que pra mim resume tudo. Ao interpelar o garoto, tendo Ladjane como testemunha e colaboradora, Clara mostra a ele que falta caráter às pessoas, falta amor, e respeito pelas relações humanas e pela história de cada um. Que o caráter, hoje, é ditado pelo dinheiro. E é isso! Dizer o que mais?
Situações que vão de uma "DR" entre mãe e filha a transas tórridas que ignoram quaisquer tabus, passando ainda por uma festa de aniversário para um filho já morto, pintam o quadro real do abismo entre as relações sociais e as pessoais, e mais os abismos de cada uma, preenchida com todos os tipos de preconceitos possíveis e imagináveis. O salva-vidas Roberval, por exemplo, chega a achar que Clara esta dando em cima dele quando ela pede o número de seu celular pra eventuais emergências - sugerindo que não há proximidades sem algum interesse, sexual ou financeiro, como mola propulsora.
A trilha sonora é um show a mais. QUEEN e Villa-Lobos se destacam acompanhando Taiguara, Gil, Caetano e Bethânia. As musicas embalam uma mulher que incomoda bem mais do que é incomodada. Que une muito mais que aparta. E que se doa muito mais que se isola. E como num clipe musical, o sol inúmeras vezes é visto de frente, iluminando o apartamento; como se nascesse ali, naquele momento, a tal Era de Aquarius. A astrologia diz que quando esse signo reinar, trará uma evolução individual de forma acelerada, e com ela uma fraternidade a solucionar questões sociais com igualdade, proporcionando um conhecimento além do intelecto e da razão, com grande percepção dos sentimentos... Enquanto dança na sala pra esquecer os problemas, Sonia Braga abre pra nós os portais dessa Era, antecipando bem as coisas. Porque Clara enfrentou a morte e viveu. Gente assim, enfrenta o que vier.
Conhecer caras novas e rever outras como Carla Ribas e Julia Bernat (mãe e filha em Campo Grande), além de Irandhi, deixou um gosto ainda melhor. Como atriz que sou, pensei, num ato de pura breguice momentânea, que "quem me dera ser filha de um peixe pra nesse límpido Aquarius atuar", mas... Pelo menos soube aproveitar ao máximo o que expectei.
Ao fim, nada poderia ser mais metafórico: Aquarius é cupim de demolição no já falido sistema capitalista e na pequenez humana que prega. Grandiosos mesmo, nesse cenário, são o edifício e sua incansável escudeira.
Maria Eduarda Novaes
Nenhum comentário:
Postar um comentário