domingo, 22 de junho de 2014

"conSCertos aqui"

Minha prometida viagem estava apenas começando, e parecia-me começar meio torta. Ainda no Km 15, um buraco - daqueles tão profundos que você espera que um japonês saia de dentro - estourou os dois pneus dianteiros, e danificou seriamente uma das rodas. Com certeza, eu não era a primeira a me estrepar (melhor dizendo, "stepar") naquela cratera. Tanto não, que em segundos apareceu um senhor com um panfleto nas mãos, me oferecendo seus serviços de borracharia. 

O nome do lugar era simples: "consertos aqui". Seu José do Pneu Murcho, como era conhecido nas redondezas, já mantinha seu guincho preparado para carregar os feridos até seu ambulatório na rua de trás. "Algo me diz que o senhor e este Canyon se dão muito bem, não!?" - nada como destilar minha ironia para relaxar, e esquecer o transtorno! "Ah, Dona, é graças a este buraco que eu nunca fico no buraco", gargalhou. A situação era mesmo boa para ele. E àquela altura, eu só esperava que ficasse boa para mim também.

Poucos metros depois, eu chegava ao simplório "consertos aqui", e era recebida pela Senhora Pneu Murcho, Dona Ana Maria. Um copo de água gelada, e uma revista Contigo (de 2002!) me foram gentilmente ofertados, e fui encaminhada a um confortável sofazinho azul, que dividi com um gato preguiçoso, e provavelmente lunático, que se misturava às almofadas ignorando completamente os 38ºC daquela tarde de verão. "Se a senhora preferir, temos uns livros também!", apontando para uma estante impecavelmente organizada. Entre uma Contigo cheirando a mofo e um livro, nem havia escolha. Podia ser Júlia, Sabrina, até Paulo Coelho, tudo bem! Ali, valia me render a qualquer um dos meus preconceitos literários.

E passeando o dedo indicador pela longa sequência de amigos-de-papel, cheguei a desejar que meu carro desse perda total, que eu não seguisse viagem, que ali eu me hospedasse para dar conta de tantos clássicos. Eu nem sabia o que escolher. Até que reparei uma trilha sonora igualmente clássica acompanhando minha difícil decisão: A Flauta Mágica, num violino hipnotizante, saía por detrás daquela estante. "Se for incomodar a sua leitura, eu peço para ele parar". "Ele?". "Sim, meu filho! É que esta é a hora de ele praticar!".

Peguei o livro que trazia meu dedo indicador sobre ele, simplesmente, sem pestanejar; e, como se fosse da família, abri a porta que me separava daquele violino. Pneu Murcho Jr. não tinha mais que 12 anos, mas sua habilidade com o instrumento era de um músico muito experiente. Ouvi a Flauta Mágica até o fim sem que ele notasse minha presença, porque ele tocava de olhos fechados... Quando acabou, enfim me notou, sorriu pra mim, e perguntou o que eu gostaria de ouvir. Não consegui escolher o livro, o que diria a música. Deixei por conta dele, pois qualquer coisa que ele tocasse, com certeza me tocaria. E ele então coloriu o ambiente com a Primavera de Vivaldi. Só aí eu tive tempo e cabeça para ver o livro que havia pego: era um 2 em 1 de Cora Coralina, que trazia "estórias da casa velha da fonte" e "o tesouro da casa velha". Comecei a ler confirmando que nada é mesmo coincidência nesta vida. Tudo está sincronizado. "Consertos aqui" era uma casa velha, e uma fonte de tantos e preciosos tesouros... 

Comecei a ler. E o menino tocou todas as quatro estações. Ao fim, o pai abriu a porta lhe trazendo um lanche. "Dona, está pronto!". "Já!?". Meu espanto foi em ver que 2h1/2 passaram voando, de modo que eu nem percebi. Pareciam poucos minutos. "Não deu pra terminar o livro, não foi!? É sempre assim, é porque somos muito eficientes por aqui. Mas não se preocupe, porque também somos generosos. O livro é da senhora, em agradecimento pela preferência!". 

Seu José era um excelente marqueteiro. Eu não "preferi" os serviços dele, eu simplesmente vivi uma emergência e ele me socorreu. Mas seu José não consertou apenas o meu carro... 

Paguei o que lhe devia, guardei o livro no bolso, e entrei no carro para seguir viagem com a sensação de que paguei muito pouco, afinal, recebi dois serviços pelo preço de um. "O senhor me arrumaria um spray preto e me emprestaria aquela escada por um minuto?", disse, saltando apressada. Mesmo sem entender, ele prontamente me atendeu. Alcancei o letreiro e pintei um "C" entre o "S" e o "E", entrei no carro e vi pelo retrovisor uma família inteira sorrindo e me acenando tchau. 

Uma casa humilde, onde se entrava para consertar a matéria e se consertava também o espírito. Graças a um concerto esplendoroso e a uma poeta, ofertados a mim por uma família riquíssima de conhecimento, fica a prova de que a música e os livros são acessíveis a todos, e podem estar em qualquer lugar. Venderam-me o serviço mecânico, e ofereceram-me água e conforto, como todos fariam, mas foram além: ofertaram-me um concerto, um livro, uma manutenção na Alma. A minha prometida viagem, definitivamente, havia começado ali... 


*Livremente inspirado no projeto Borrachalioteca, criado em 2002 em Sabará/MG. Vale a pena conhecer!

http://borrachalioteca.blogspot.com.br/