segunda-feira, 11 de julho de 2016

~O Doador de Desejos~

E sempre naquela hora do dia, a campainha tocava. Era o carteiro. O remetente e o destinatário daqueles envelopes conviveram por 100 dias consecutivos. Um era o doido; o outro, o doído. E quando temporariamente trocaram de papel, o bizarro forasteiro entendeu o porquê do padecimento de seu hospedeiro, e resolveu ajudar... 

Aquele era um vilarejo sem anseios. Os que ali viviam já possuíam o que precisavam em matéria de subsistência básica; e ao longo dos anos, foram se acomodando e deixando até de reparar nas coisas que não lhes matavam a fome ou o frio. Até que após anos sem receberem alimento próprio e abrigo condizente, a fome de afeto e a necessidade de calor humano vieram com força. E eles já não sabiam sequer o que procurar para sanar este problema. Era um vilarejo de zumbis que tão somente respiravam, comiam, dormiam, se abrigavam... E tentavam conviver com aquele outro tipo de vazio e frio! 

"Que gosto seu beijo tem?", perguntou o forasteiro à primeira transeunte que viu. E precisou explicar-lhe logo em seguida o que era um beijo. "Então, é de feijão!", respondeu, explicando que essa foi a última coisa que havia comido. "Quer saber que gosto tem o meu?"... Mas ela apenas acenou uma negativa com a cabeça, virou-se e foi embora... Apatia!... Ele era tão diferente de todos ali que deveria minimamente chamar a atenção, mas nem isso. Sequer o desejo de olhá-lo, ou de questioná-lo, existia. E o fato de ter sido notado por um deles, e ter ainda um abrigo oferecido, acendeu nele a curiosidade: por que ao menos aquele homem não era apático??? 

Dono da padaria do vilarejo, o hospedeiro praticamente só vendia leite, pão, arroz e feijão; mas, de teimoso, seguia fabricando queijos, manteiga, salames, e também doces - especialmente os Sonhos e os Suspiros - e tentava, a todo custo, vendê-los aos clientes. Sem sucesso. Ao fim do dia, comia seu sanduíche especial, e de sobremesa, um doce. Mas a felicidade logo acabava quando ele tinha de jogar todo o resto fora... Sonhos e Suspiros! Só podia ser isso: o hospedeiro era o único ali que ainda conhecia algum prazer além da própria sobrevivência. Por isso, ainda conseguia reparar minimamente no Mundo ao seu redor. Mas a tristeza por ser o único ali a experimentar isso o dominava ao fim do dia. Até que caiu doente, não foi abrir a padaria, e as pessoas começaram a cair desmaiadas pelas ruas... O forasteiro viu ali uma oportunidade única para acabar com a letargia. Assumiu o estabelecimento - e, sobretudo, o restabelecimento da ordem.

"Mas, desse jeito, eu não tenho como pagar", se queixou um cliente diante da nova tabela de preços:

1L de leite - uma moeda, mais um sorriso 

2L ou mais - duas moedas e um abraço em alguém na fila 

1 pão - meia moeda, e um "bom dia"
(nessa semana, todos irão com manteiga)

2 pães ou mais - duas moedas e um barulhento beijo 
(nessa semana, vão com salame e fatia de queijo)

1kg de arroz - uma moeda e meia, e um aperto de mão

1kg de feijão - duas moedas e meia, e uma regra especial: 
só serão vendidos a duplas que estiverem de mãos dadas. 

À noite, brinde obrigatório: 
Ou um Suspiro ou um Sonho
(fica a gosto do freguês) 

"Estamos sob nova direção, rumo à direção certa!", afirmou o forasteiro, saboreando a satisfação de saber que os gostos iriam mudar de vez por ali. 

Nos primeiros dias, gestos forçados, desengonçados, faces demonstrando estranhezas, incômodos, mas nunca rebeldias. Obedecer era mais natural - e mais cômodo - que desobedecer. Precisavam comer, e fariam o que preciso fosse. Até que enfim, o "gerente" notou que as duplas que vinham buscar o feijão não eram mais as mesmas de sempre. O "bom dia!" vinha também daqueles que não estavam comprando pão. As escolhas entre o Sonho ou o Suspiro não eram mais automáticas. E os sorrisos apareciam antes mesmo de o pedido do leite ser feito no balcão, e perduravam após a compra concluída. Hora de reajustar a tabela, e tornar as coisas um pouquinho mais "caras"... 

"Comam Flores com os olhos, e regurgitem fotografias. Elas valerão um pão a mais na cesta". E aqueles objetos empoeirados, e até estragados, começaram a ser recuperados. Um mural foi se formando na parede da padaria, e admirado pelos clientes enquanto aguardavam na fila. As fotos também começaram a trazer crianças ao lado das plantas; e uma disputa sobre quem havia feito a melhor imagem era a razão dos sussurros naquele renque cotidianamente tão soturno. 

Ao voltar pra casa do hospedeiro, levando sempre seu sanduíche e seu doce, ele via que o sucesso da nova gerência fazia o amigo melhorar um pouco a cada dia. Até que naquela noite, ao chegar, já o encontrou sentado no banco da praça, aguardando ansioso não exatamente pela comida, mas pra saber qual havia sido a "promoção" do dia. E isso deu ao forasteiro uma grande ideia.

A padaria amanheceu fechada. E alguns, de nervoso, desmaiavam antes de ler a faixa na porta que dizia "Estaremos funcionando na Praça das Mangueiras! E tudo o que for comprado lá, deverá ser consumido ali mesmo!"... "Comeremos feijão cru?", indagou, confuso, um homem que portava ao menos umas 15 fotos nas mãos, almejando ganhar de brinde pão suficiente para a semana toda. Mas, não, nada cru! Havia ali pães frescos, pães com recheios, Sonhos, Suspiros, arroz e feijão já cozidos, e temperados; e mais incontáveis novidades... Pelo chão, toalhas coloridas espalhadas. E o homem das 15 fotos não precisou trocá-las por pães. Aliás, ele não quis trocá-las por nada, principalmente aquelas em que seu filho aparecia. 

Sem ser notado, em meio àquele convescote nada improvisado, o carteiro apareceu portando um telegrama. Era para o forasteiro...

E sempre naquela hora do dia, a campainha tocava. Era o carteiro... O forasteiro teve de partir, mas a cada dia mandava ao hospedeiro uma tabela de preços diferente. Foram 100 dias de convivência, e mais 100 dias de consultoria à distância. E ele sabia que àquela altura, todos já haviam despertado os próprios desejos. Os amigos já podiam se despedir. Ao invés de um telegrama, chegou uma carta.

"Sei que vocês já pegam frutas nos pé e fazem uma salada gigante aos sábados na praça 12. Sei que o despertador já desperta dor e causa raiva, e está terminantemente proibido aos fins de semana. Vocês já ouvem músicas, tomam banho no riacho das margaridas, fabricam sorvetes, reativaram o cinema, trocam cartas, leem livros, e fazem até concurso de fotografia. Sim, vocês já entenderam que nem só de pão, leite, arroz e feijão vive o Homem, e nem estocam mais nada no inverno pra poderem aproveitar a neve com os filhos... E se sei de tudo isso é porque até fofoca vocês reaprenderam a fazer, não é?... Eu cumpri minha missão. Até os desejos mais malucos eu sei que doei a vocês. Teu vizinho enlouqueceu com a ideia de querer ter olhos nas costas. O filho dele sobe em árvores e pula achando que assim vai aprender a voar... Eu sei, foi tudo às pressas, mas cumpri minhas ideias. Devolvi em versos cada palavra solta que ganhei. E como recompensa, vi na multidão um desejo que não reconhecia, pois nunca foi meu; mas que me foi doado... Escrevo para agradecer a profunda vontade que hoje tenho de agradecer por tudo! A Gratidão é sem dúvida o melhor dos presentes" 

O forasteiro só não contou que doou todas as suas vontades, exceto uma: ele sempre reteve o desejo de voltar àquele vilarejo, mas dessa vez pra ficar...

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