Abandonos sempre remetem, primeiramente, ao desleixo, à maldade, ou à fuga da responsabilidade. Mas na imensa maioria dos casos, abandona-se por julgar que o "objeto" deixado estará em melhores condições - por mais que isso doa, e por mais que, aos olhos dos outros, pareça um erro, ou até um crime...
O filme Campo Grande, da cineasta Sandra Kogut, mostra diversos tipos de abandono focando no principal deles: duas crianças são deixadas pela mãe em frente a um prédio da zona sul do Rio, com a promessa de que "voltava logo". Com elas, apenas um papel onde vinha escrito o nome de uma das moradoras. Regina (Carla Ribas) está no meio de um furacão pessoal, onde seus abandonos são infinitamente mais importantes que aquele que acabara de cair de para-quedas sobre ela. Recém-separada, ela se prepara para deixar o apartamento onde vive, enquanto lida com a opção da filha em ir morar com o pai - evidenciando um abismo entre elas. E até um sofá de 3 lugares, do qual ela terá de se desfazer, pesa em seu momento. Quando o porteiro traz Rayane, de 5 anos, que chora copiosamente, Regina tenta resolver a situação de imediato. Como não consegue, apela até mesmo para sua empregada doméstica; mas uma chuva torrencial introduz a menina, e seu irmão mais velho, Ygor, de vez em sua vida.
Campo Grande narra - de forma, a meu ver, um pouco cansativa às vezes, mas em nada vazia - a hecatombe que é quando se vê abandonado, ou tendo de abandonar o que mais se ama; e a mudança obrigatória - e tantas vezes descontrolada - que isso acarreta. O roteiro parece ter sido pego e depois "abandonado" no meio, o que me soou bastante proposital, e de encaixe perfeito. Partes da trama levam o espectador a deduzir o porquê de tal cena. E a última delas nos faz imaginar inúmeras outras na sequência. Acho isso ótimo, porque faz o espectador se desacomodar daquela máxima de que tudo em um roteiro tem de ser minimamente explícito ou explicado - algo com começo, meio e fim redondinhos... E para narrar abandonos, nada mais propício que abandonar logo de saída o excesso de personagens. Abandonou-se também o excesso de diálogos. Das cenas, geralmente longas, a maior parte traz muitas expressões e poucas palavras, e, por isso, dizem muito. E o caos de um Rio de Janeiro em obras torna-se a trilha sonora mais perfeita para todas aquelas mudanças bruscas às quais a obra se resume.
Sem saber o que fazer com as crianças, Regina e a filha, Lila (Julia Bernat), os deixam em um abrigo, mas Ygor consegue fugir e voltar à casa, pois crê que tem de estar lá quando sua mãe voltar. Provocada pela filha, Regina acaba levando o menino a Campo Grande, onde ele diz que sua avó mora, para tentar localizar a família, mas avisa: "se não acharmos, é daqui direto pro abrigo! Porta a porta! Entendeu?".
A partir daí, os planos fechados em cada personagem, focando suas expressões e emoções, entregam o objetivo maior do filme: as relações e reações humanas. Tanto que demora-se a perceber outra mensagem subliminar que é o próprio cenário: a mudança vai limpando cada vez mais o ambiente. Primeiro, são caixas espalhadas; depois, pilhas delas; depois, vazios. A vida estava uma bagunça organizada, depois virou a bagunça desorganizada que expôs a realidade mascarada, e então foi-se esvaziando até não ter outro cenário possível senão a real mudança. E plano fechado exige dos atores talento e técnica. E isso é o que não falta no filme. Cada um em seu papel dá o melhor de si. Carla Ribas está impecável, e suas cenas com Ygor são, de longe, o melhor saldo da obra.
Com a delicadeza e a sabedoria de que menos é mais, vemos um Campo Grande resumido a um plano fechado na relação entre uma mulher de classe média alta e uma criança pobre abandonada, que não poderia resultar senão no que se chama por aí vulgarmente de "resumo da ópera": TODOS CABEM em Regina e Ygor!
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