sábado, 23 de julho de 2016

~MÃE - e Gênia! - SÓ HÁ UMA~
"É pela obra que se conhece o autor" 
Jean de la Fontaine, poeta e fabulista francês, nascido em 1621

E é num ditado popular que enfim se consolidam não só a obra, mas principalmente sua autora. Não, eu não me refiro à máxima "Mãe só há uma", e sim à "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura!". 

Anna Muylaert chegou ao mundo horas depois do golpe militar se instalar no Brasil (nasceu em 21 de abril de 1964). E como se já não bastasse nascer num país privado de liberdade, nasceu Mulher em uma sociedade altamente machista; mas ignorou esses "detalhes" e foi galgando seu espaço num esmerado trabalho de formiguinha... Não coincidentemente, sua fama e notoriedade chegaram de vez através de seu trabalho mais popular - no duplo sentido! - cujo título hoje é símbolo da luta pela resistência democrática. Em "Que horas ela volta?", Anna denuncia o Brasil segregacionista, desmascarando essa grande fatia do passado ainda presente para que ele não seja futuro. E o Machismo, ela combate se tornando membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, e anunciando ser este tema o foco de seu próximo longa, ainda em fase embrionária. "Não sei ainda como será abordado, mas quero que as mulheres saiam do cinema pensando 'como eu pude sempre aceitar isso?', e os homens saiam envergonhados pensando 'como eu pude sempre praticar isso?'", afirmou a cineasta durante o debate pós-exibição de sua recente obra em Brasília, na noite de 22/07, evento do qual tive o prazer de participar ativamente. 

Ao contrário de "Que horas ela volta?", em "Mãe só há uma", o social fica em segundo plano, dando ao íntimo/pessoal um espaço de pleno destaque - a começar pelo plano fechado da câmera em seus personagens e ambientes, escancarando pessoalidades e particularidades. Livremente inspirado na história real do sequestro do menino Pedro Braule Pinto (o Pedrinho), tirado da maternidade em Brasília em 1986 por Vilma Martins (que ainda sequestrou outra criança anos antes), Anna apresenta ao público um adolescente que vê sua vida desmoronar da noite pro dia quando é informado que não fora adotado, mas sim roubado, e sua família biológica chega de súbito para levá-lo ao seu "verdadeiro lar". Essa mudança brutal assume o protagonismo quando o que de fato estava em evidência era seu processo de transição de gênero, a busca pela sua identidade sexual; um processo que, aliás, acontecia em total privacidade, mas que fora içado a fórceps quando Pierre passou a ser Felipe, o filho idealizado por uma família de classe média alta tão engessada pelas convenções que precisava "encaixá-lo" nelas.

Nada, absolutamente nada neste roteiro - de característica aberta - é acaso ou coincidência. Ao título, Anna faz jus dando à mesma atriz, Dani Nefussi, o papel de ambas as mães, nos remetendo à outra máxima bem popular que diz que "mãe é tudo igual, só muda de endereço". Como nada é mais clichê que ditados populares, então, pode-se esperar um filme repleto deles, certo? Errado!!! Trazendo apenas uma figura realmente famosa e conhecida do grande público, que é Matheus Nachtergaele, de personagem homônimo; a obra já aí é um desmanche de todos os rótulos. Quem tentar, por exemplo, rotular a sexualidade de Pierre pode acabar maluco; assim como esperar que todas as cenas tragam uma justificativa para a cena anterior e um prenúncio para a seguinte. Tendo como ponto de vista o conflito do protagonista, a narração é fiel às lacunas que sufocam o adolescente - lacunas essas que serão preenchidas pelo público, já que o filme não julga, portanto, não explica e nem define nada!

Um filme de baixo orçamento, com caráter tão doméstico, chega pra contrastar o sucesso anterior em tudo, exceto no sucesso em si. É óbvio que muitos irão ao cinema esperando várias semelhanças entre os "filhos" só porque a Mãe é a mesma (ou seria melhor dizer "as mães"?), mas fora a qualidade geral da produção - de excelente elenco e ótima exposição da temática proposta -, não esperem ver na rebeldia de Pierre uma continuação daquela presente em Jéssica. Porque enquanto uma gritou por tantos, o outro grita por si! Dois lados de uma mesma moeda que mostra o preço que pagamos quando o social entra em cena pra simplesmente padronizar o pessoal ao invés de compreendê-lo, e, sobretudo, aceitá-lo.

E enquanto "Mãe só há uma", vários sãos os filhos! Entre Jéssica e Pierre, uma descendência incontavelmente vasta e impossível de se ignorar e, sobretudo, rotular. A única coisa que se pode rotular nisso tudo é o Cinema Nacional como "tão plural que chega a ser singular...


Maria Eduarda Novaes

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