Entre um enxame de importantíssimas questões
(atenção: contem spoilers)
O filme Entre Abelhas, roteirizado e protagonizado por Fábio Porchat, foi, pra mim, o filme nacional que faltava para equivaler a Quero ser John Malkovich no gênero-alternativo "abordar o banal de forma original"; pois o que faz um fato ser importante e atraente é simplesmente a maneira de contá-lo.
No longa americano, o eterno desejo que o ser humano tem de viver a vida do outro, achando que esta é sempre mais fácil e mais prazerosa que a sua, é contado de uma forma tão diferente que, à época, a maioria das pessoas detestou, e só conseguiu adjetivar a obra como "sem noção", "ridícula", e afins. Com Entre Abelhas, li as mesmas críticas/expressões, mas não pelo filme como um todo, e sim, especificamente, pelo final.
O público brasileiro ainda não está acostumado a finais abertos. Ele sempre pensa que "o autor não soube terminar, e aí fez essa M...". Brasileiro está acostumado a receber respostas, não a fazer perguntas. E este filme, do começo ao fim, é um enxame de questionamentos, para os quais, talvez, nunca tenhamos uma resposta exata. Mas a Filosofia há séculos nos diz que mais importante que a resposta é a pergunta, pois uma pergunta correta geralmente vem com a resposta embutida. É feito um eco perfeito, um bumerangue de radar preciso. Então, quem soube fazer as perguntas certas, e compreender as que o próprio filme fez, não precisou da plaquinha de the end.
Entre Abelhas fala da Depressão, do Isolamento ao qual se rende aquele que vê sua zona de conforto desfeita da noite para o dia, e os confrontos enfim acontecem... Conforto e Confronto: palavras tão parecidas, mas ao mesmo tempo tão antagônicas!... O filme mostra como é difícil mudar o foco, e quebrar paradigmas; e sobretudo o que acontece quando mudamos o foco e quebramos os paradigmas. E para tal, temas como a invisibilidade social, o machismo, e mesmo o descaso com o lado profissional (que geralmente ocupa mais da metade do nosso tempo de Vida) permeiam a trama corroborando sua temática.
Cenas aparentemente sutis gritam como mensagens subliminares. No ponto de ônibus, o primeiro "invisível" que é visível ao público é um negro que pergunta a Bruno para onde vai o ônibus; e é uma senhora idosa que responde ao rapaz, já que o protagonista o ignora. Um negro e uma idosa: dois entes sociais altamente ignorados no dia-a-dia. Outro "invisível" que é visível para nós é o garçom, que Bruno diz, sem perceber que ele está ao lado pronto para serví-lo, que "por 300 reais, comeria até merda!". O motorista de táxi tenta ser cordial, pois sabe ele que seu passageiro é a parte mais importante de sua profissão, que deve ser seu foco; mas Bruno demonstra que ele não lhe é importante, fazendo-o, então, simplesmente "sumir". Só depois de se desfocar do celular (representação física perfeita da máxima individualidade no mundo moderno) e se voltar para o homem, é que ele percebe sua ausência. Outra sutileza interessante foi no consultório médico, quando o doutor diz à mãe de Bruno que ela só tem "gases", ignorando a queixa da paciente, deixando de examiná-la e assim diagnosticar o problema cardíaco que viria a vitimá-la. Descaso com a vida humana, que se reflete de inúmeras maneiras entre nós, espantosamente incluindo aqueles que juraram defendê-la. Descaso com os humanos que julgamos não significarem nada para nós é o arroz-com-feijão, o pão nosso de cada dia; e só quando nos sentimos assim, insignificantes para os demais, é que de fato faz-se a Luz...
Bruno se separa da mulher e volta pra casa da mãe. Seu melhor amigo, Davi, pensa que a solução do problema está em mergulhar profundamente no círculo vicioso tipicamente masculino: noitadas com mulheres, álcool e futebol. Além disso, Davi traz a Bruno os seus próprios problemas, deixando-o sem espaço para pedir socorro em solucionar seu drama, que parte do óbvio: entender minimamente o problema para encontrar a solução. Na boate, Bruno recebe de uma profissional do lugar uma atenção atípica, bem diferente da prevista, o que claramente chama a sua atenção; além de reparar numa cadeira vermelha que queria dar de presente à ex-esposa.
É a partir daí, quando se vê desolado e desamparado, que o protagonista passa a perceber a ausência das pessoas. Começa justo aí a maneira original e interessantíssima de se contar o outro lado da moeda. Bruno passa, na verdade, a se ver jogando no outro time. Ele passa a sentir na pele a invisibilidade gerada pelo egocentrismo. Ele passa a se focar no Mundo ao redor, e percebe que este Mundo não está focado nele. Por isso que visível a ele, só os que têm algum papel em seu conflito. Ou seja, ele mesmo só é visível para estas pessoas em questão.
No consultório do médico, Bruno faz uma alusão às colmeias, afirmando que cada abelha já nasce sabendo sua função, mas que mesmo assim elas estão saindo em missão sem conseguirem voltar. Diz se sentir como essa abelha que se perdeu, que foi parar ali para não morrer, mas seu instinto mostra que tem de voltar pra lá. É uma metáfora perfeita para falar da Depressão, que é quando a pessoa não vê saída para um problema, não percebe que há Vida além da sua Zona de Conforto, sentindo-se perdida e confusa longe das Abelhas-Rainhas que o orientam e protegem. Por isso, após perder a mãe, e perceber que a mulher de fato não reataria a relação, Bruno chega à fronteira entre sua colmeia e uma nova capaz de absorvê-lo.
A grande cartada, que prova isso, é só restarem visíveis ao fim a moça da boate, e ele mesmo, com o telefone dela escrito na testa. E quando ele a procura, todo o resto some, incluindo nós, telespectadores, num black-out onde nada mais se vê, e só o que se ouve é um "alô". A moça representa um recomeço, o retorno à colmeia onde a única certeza que se tem é que nada mais será como antes. Nada mesmo. É a razão de o "fim" não trazer nada mais que a última parte comum a todos nós. Depois daquele "alô", apenas ele, ela e novas abelhas... Eis a ideia central/solução: mudar o foco e seguir em frente.
Quando o cartaz questionou o que a gente faria se parasse de ver as pessoas, antes mesmo de ver o filme eu me fiz a pergunta oposta: o que a gente fariam se começassem a VER as pessoas??? A reparar no mundo que nos cerca, e sobretudo entender que somos parte dele, e não o seu centro??? O que a gente faria se finalmente entendesse nossa função na colmeia??? Creio que, minimamente, não nos perderíamos mais! Depressão nada mais é que falta de um foco além de nós mesmos; de perspectiva; é sobretudo resultado da falta de autoconhecimento e de conhecimento do que nos cerca. Quem se enxerga bem, e sobretudo enxerga além de si é capaz de ver a quantidade inesgotável de colmeias e caminhos para se chegar até elas.
Maravilhoso ver que há vida inteligente na nossa colmeia. Vida capaz de guiar as abelhas que nunca sequer entenderam a sua função, ou aquelas que se perderam no meio do caminho. Sem abelhas não há polinização. Sem polinização não há Vida. Ninguém vive só, e ninguém vive à toa. Ainda bem que eu vivo para ver coisas assim...
Gostei muito das suas observações. Vc escreve de forma clara, objetiva e com muita perspicácia. Como vc diz, é um filme que demanda reflexão e cujo final aberto gerou perplexidade e, em alguns casos, uma raiva desmedida. Eu interpretei de forma diferente o final, não fiquei convicta de que de fato ele ouve o alô, mesmo com a música final, creio que o ver claramente é ver-se, perceber-se antes de ser percebido pelo outro. Enfim, isso pra mim foi o genial do filme, fazer com que muitos discutissem o enredo depois de assisti-lo.
ResponderExcluirOlá, Isabela. Obrigada pelo retorno. E saiba que sua interpretação não é em nada errônea ou descabida. Faz todo o sentido! Esse é o bacana dessa obra, ela não sela nenhum destino, e a gente que o engula. Não. Ela depende de cada um pra se fazer continuar.
ExcluirSim, como no conto de Machado de Assis "O Espelho", teoria da alma exterior.
ExcluirLembrei desse conto ao assistir o filme.
Certa vez li artigos de estudos de psicologia e literatura que referiam que a observacao de Machado de Assis, proposta no conto, coincidia, em muitos aspectos, com a teoria posteriormente desenvolvida por Freud: ID, ego, superego. Que cai no mesmo ponto do filme "Entre Abelhas", embora, ao contrario.
O ponto comum e a auto percepcao.
No conto de Machado o personagem Jacobina/Alferes se viu numa condicao de exaltacao tao grande de sua pessoa, em razao de seu cargo, que passou a se perceber somente a partir da devolutiva que recebia, entao, quando as pessoas se foram, as referencias de si mesmo tambem foram eliminadas. Por esse motivo ele perdeu a imagem no espelho, ou seja, se as pessoas sumiam, sua identidade "sumia" junto.
Bruno, ao contrario, estava no extremo oposto, nao perdia identidade ao se afastar das pessoas ou, talvez, ate mesmo, ao "desaparecer" com todos, talvez refutasse tambem a parcela da sua auto percepcao advinda do olhar externo, entre outros fatores... Entao, para ele, pouco importavam tais devolutivas, menos importavam as pessoas e por tabela, o campo de sua auto percepcao ficou mais restrito e superfocado em aspectos introspectivos.
Penso que os dois personagens sao extremos e que falta equilibrio... ao assistir "Entre Abelhas" lembrei de duas obras literarias que li ha anos "Memorial do Convento" em razao das cenas surreais, que a critica chama de realismo fantastico e, principalmente, de "O Espelho", por essa questao de auto percepcao, a opiniao das pessoas influenciam na percepcao de nos mesmos e, ate que ponto Alferes/Jacobina ou Bruno utilizavam se dessas devolutivas para formar sua auto percepcao?
Em comum com o conto e a questao do " desparecimenro" da imagem do reflexo da imagem do alferes/Jacobina quando distante daqueles que legitimam sua identidade.
Ja Bruno, voluntariamente, se desfaz das pessoas e, junto com elas, do olhar externo, a imagem de si mesmo permanece nitida, porem, fica restrita a si mesmo, a medida que afasta as pessoas, refuta tambem a pardela da influencia delas na composicao de sua identidade... penso que as duas personagens vivem situacoes em extremos opostos e padecem com isso... talvez, por essas e outras, "a virtude esteja no meio".
Parabén pela critica super bem construida Duda! Realmente conheço pessoas que não gostaram do filme, e também acredito que para isso acontecer a pessoa não deve enxergar um palmo a frente de si.. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Thaís. Fui uma das que pensou que o filme estivesse "cortado", kkkk. Custei a captar a genialidade da coisa. Mas, ainda bem, ao fim eu consegui. Ufa!
ExcluirPARABÉNS PELA OBRA..... ENTEDI E GOSTEI..... ACREDITO QUE AS PESSOAS QUANDO VE O NOME FABIO PORCHAT, UNE COMENTE A COMÉDIA, ESQUECENDO QUE FABIO É UM ATOR, ONDE ENTRA E SAI DE UM PERSONAGEM, CONFORME SUA DURAÇÃO.... SEJA COMÉDIA, DRAMA OU MELODRAMA. PARA BÉNS FABIO PELA ATUAÇÃO NESTE E OUTROS....
ResponderExcluirCara muita boa sua análise. O filme é muito bom. e me faz repensar minha posição no mundo
ResponderExcluirValeu, Tácio! Precisamos, sim, repensar nossa função na colmeia. Precisamos, aliás, conhecer a colmeia, parar de ignorá-la!
ExcluirNossa, que texto perfeito!!
ResponderExcluirPerfeita descrição!!
ResponderExcluirPenso que essa foi uma das análises mais completas que já li até agora sobre "Entre Abelhas". Como a Isabella disse, você escreve com clareza e perspicácia. Perspicácia essa que faltou na maioria que viu o filme. É preciso mergulhar nas entrelinhas do filme para entender e sentir Entre Abelhas.
ResponderExcluirParabéns. Postagem excelente!
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Obrigada, Érica. A sua não fica nem um pouco atrás! Bom para nós que entramos na mesma sintonia dessa obra tão ampla, né? Bjs
ExcluirÓtima análise!! Só não compreendi o porquê dele deixar de ver a mãe dele pouco tempo antes dela morrer. Alguma idéia?
ResponderExcluirAcredito que seja porque ali o foco dele era entregar a cadeira vermelha para a ex mulher, e não a mãe. Foi mais uma a sair do foco dele, principalmente naquele momento em específico.
ExcluirDepois de ler a análise as coisas ficam mais claras...
ResponderExcluirTinha algumas cenas que eu pensava: "Tem algo aí, mas não sei bem explicar o que é".
Na verdade, o filme é genial... só que eu não fui preparada para um filme genial, por isso deixei passar muita coisa.
É como você disse sabiamente: "brasileiro está acostumado a receber respostas, não a fazer pergunta", eu me incluo nesse grupo, fui surpreendida.
E saí de lá com muitos questionamentos e dúvidas. E fico feliz de encontrar quem faça uma análise tão bem feita. Que ela seja o disparador de muitas discussões acerca sociedade individualista em que vivemos hoje.
Oi, Paula. Tudo bem? Depois que a gente é mordido pelo bixinho-do-filme-cult a gente não engole mais os enlatados de cada dia, rsrs. Bjs
ExcluirPois é Duda, acho que eu estava bastante enferrujada. Rs.
ExcluirBjs.
Ps. Muito bom o seu blog. Sucesso!
Duda, sempre perfeita em tudo que escreve... Adorei demais a crítica, simplesmente profunda, complexa, mas sem deixar a clareza de lado! Assisti ao filme e não sai decepcionada!
ResponderExcluirMari Linda, obrigada, Amore! Te adorooo!
ExcluirMuito bom.. Mostra o vazio do egocentrismo em algumas pessoas. Acontece q o filme chamou o publico errado.. ou correto?! Fazendo um favor a estes e sociedade
ExcluirMelhor texto sobre o filme! Porchat soube abordar o tema de forma sensível e criativa; poucos compreenderam e, você explanou de forma brilhante. Parabéns!
ResponderExcluirOi, Ana. Esse filme pode ser colocado na lista dos filmes "Cult" sem medo de errar. Obra prima
ExcluirVc é demais, prima! Fiquei louca p assistir o filme ;) Ainda não tive oportunidade...
ResponderExcluirBjo!!!
Oi, prima! Que bom demaaaaais vc por aqui! Saudades! E, sim, veja o filme que é sensacional!
ExcluirAdoreeeeeeeeiii!!! Muito bom mesmo, agora pude entender o filme...E eu fui uma das que sai do cinema reclamando que o filme era uma m... Parabéns pela crítica!
ResponderExcluirOi, Fernanda! O bacana da vida é essa faceta: nada nos impede de amar o que antes não gostávamos. A Vida muda constantemente, e essa é a sua maior graça! Bjs
ExcluirSó não concordo com a parte que você falou de depressão,pois depressão é algo muito sério que não deve ser tratado como bobagem,é um problema de saúde,fora isso achei ótima a análise.
ResponderExcluirOnde eu tratei a depressão como bobagem????
Excluir"Depressão nada mais é que falta de um foco além de nós mesmos; de perspectiva; é sobretudo resultado da falta de autoconhecimento e de conhecimento do que nos cerca."
Excluirnessa parte por exemplo
isso é uma definição vinda da área de estudo, simplesmente. Apenas definição! Isso não é "interpretação minha", e, ainda que fosse minha, a interpretação de "bobagem" veio de você, não de mim!
ExcluirBelo texto, Dudaaaa!... O cinema nacional precisa mesmo te filmes mais filosóficos. Fiquei curioso pra assitir. Saudade ;)
ResponderExcluirEd, amigo Lindo. Saudades também. Veja, é muito bacana, e profundo! Bjsss
ExcluirRealmente, ele é bem, bem forte neste quesito! Muito marcante!
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