~A MOÇA DA
BICICLETA~
(numa manhã fria de março)
Todos os dias úteis, de segunda a sexta, vou
caminhando da rodoviária central de Brasília até o começo da L2 Norte, onde
trabalho. Isso dá aproximadamente 1,5km. São mais de mil metros de pensamentos
geradores de poemas. E poesias nascidas ao ar livre - com sons, perfumes e
vistas privilegiadas - são sempre melhores. Meus últimos 300 metros são ao largo
da ciclovia. Neste horário, o número de ciclistas não é nada intenso. Tanto não
é que, apesar de estar a pé sobre um calçamento especial, não dá pra me sentir
um obstáculo, ou uma intrusa no ninho; sinto-me, sim, como a Dorothy, passeando
sob a mágica estrada de concreto alaranjado e listras amarelas, e cuja viagem
astral só sofria uma pausa quando ultrapassada pela Moça da
Bicicleta!
Observei que sempre e somente ela, portando
uma mochila verde, ou às vezes vermelha, cruzava o meu caminho. Era uma
sincronia perfeita. Quase dava para acertar o relógio baseado nos encontros
(7h05-7h10). E meus pensamentos, que já estavam embalados, pegavam essa carona e
me deixavam só, por alguns metros e segundos, até a Moça da Bicicleta Diferente
e da Mochila Delicada sumir do meu raio de visão. Aí, meus pensamentos voltavam
me trazendo tanta energia nova que eu me perguntava "quem é ela?",
"como se chama?", "de onde vem, e onde trabalha?", "quais
sonhos ela carrega em sua mochila verde? Seriam os mesmos da mochila vermelha? E
seriam parecidos com os que trago em minha mochila marrom?", "ela também
carrega livros? Lanches? Chupetas e fraldas???". E como eu não sabia as
respostas, fui dividindo com ela o que eu trazia em minhas mochilas - a marrom,
e a "cinzenta"; e, de quebra, ia nos acrescentando pacotes de
fantasias.
A
Moça da Bicicleta e a Moça da Mochila Marrom, ainda que sem saber, tinham se
tornado amigas... Dois aros, tantos elos: faz-se amigos em uma "ciclovida"! Porque fazer
amigos é o sentido da vida!
Os dias foram passando, e eu me acostumando
a esperar a hora e a vez de ser ultrapassada por ela, e ter meus pensamentos (tão cuidadosamente fabricados) temporariamente surrupiados; e ansiosamente
aguardá-los voltar e descobrir quais coisas ele deixou, e quais coisas ele
trouxe da mochila dela. Era um intercâmbio silencioso. E saber que ela nem desconfiava da nossa história, me divertia muito. Tanto que quando ela não passava,
eu sentia falta; e só assim mesmo para eu reparar que, sim, havia no mundo
outros moços e moças de bicicleta, mas, talvez por eles não carregarem mochilas,
e nem terem uma bicicleta diferente como a dela, eles não me interessavam em
quase nada!
Até que um dia, eu e a Moça da Bicicleta
ficamos lado a lado por alguns segundos, esperando os carros passarem para
atravessarmos a rua. Inédito isso. Vesti uma cara de deslumbrada, e tive a
grande chance de conversar com ela. E ali eu percebi que nem nas minhas
fantasias eu tinha dado um nome a ela, definido onde ela trabalhava, quantos
anos tinha, nada! Eu só ousava desenhar o Mundo das nossas mochilas. Eram os
livros que eu tirava da dela (ah, sim, "A Menina que Roubava Livros" foi
inspirado em mim!), os que eu presenteava, os papéis de carta perfumados com
desejos de Paz, retratos de família autocolantes, as abelhas-balinhas,
borboletas-bombons, bigodes de pelúcia, e tudo o mais que só existe mesmo dentro
da minha mochila cinzenta. Achei que se falasse com ela, essa fantasia poderia
se quebrar. É difícil manter um conto-de-fadas quando há muito seu corpo já saiu
da infância, então, sentia que tinha um tesouro a ser preservado. Apenas nos entreolhamos, sorri
pra ela, ela sorriu de volta, e seguiu levando na mochila mais presentes que eu
lhe dei ali mesmo, no exato momento. E fiz a gentileza, em agradecimento pelo
sorriso, de não roubar nada desta vez...
Quando cheguei ao trabalho, conversei com
meu parceiro de labuta, que tanto curte meus escritos, sobre a fábula "A Moça
da Bicicleta e A Moça da Mochila Marrom", e ele me disse que eu deveria
escrever sobre isso. Vontade nunca me faltou, então, naquele instante, fui
transformando tudo em palavras. Tentando, na verdade, pois ora me nasciam
poemas, ora ensaiava um livreto infantil, daí eu pensava num conto, mas queria
que fosse o enredo do meu primeiro curta-metragem, e por fim vi surgir uma
crônica que seria o novo papel de parede da minha casa virtual... AAAIIIIII...
Ainda bem que o trabalho me engoliu, e me desfiz momentaneamente da "obrigação"
de transcrever toda a história.
E tudo teria seguido o mesmo rumo rotineiro
se não fosse o dia em que o despertador me fez atrasar dez minutos. Quando
cheguei à minha estação de metrô, quem eu vejo entrando nela?! A pergunta "de
onde ela vem?" estava sendo respondida. Éramos não apenas vizinhas de
trabalho, mas de casa também. Ignorei o medo de o encanto da brincadeira se acabar, e decidi
falar com ela. "Quer ajuda?", perguntei ao ver que ela parou por alguns
segundos com a bicicleta diante da escada. Sorrindo, disse "obrigada, não se
preocupe, ele me ajuda!" se referindo ao filho, um rapagão bonito, e
uniformizado. "A gente costuma se cruzar na ciclovia perto do início da L2,
eu trabalho na ***, ali pertinho!", comecei assim, e rápido, antes que a
timidez me bloqueasse por completo. Ela reconheceu o fato, sorriu com vontade, e
eu acabei dando a ela um papelzinho com meu e-mail e o endereço do blog, dizendo
"em dois dias, passa lá! Estou preparando uma crônica chamada A Moça da
Bicicleta".
E
assim, da nossa estação à estação final, conheci RAQUEL e seu filho. Ela me disse que trabalha no prédio vizinho, e se espantou em saber
que eu fazia o percurso todo a pé. Nos despedimos na saída da estação, e mesmo
sabendo que não nos veríamos no caminho de concreto alaranjado de listras
amarelas, sabia que não havíamos perdido o dia-de-trocas. Ao
contrário.
Cheguei ao trabalho
empolgada com o encontro, e mal havia contado ao meu parceiro quando recebo uma
ligação. Era Maria da Paz, minha colega e amiga, me dizendo "Duda, que legal,
acabo de saber que você conheceu minha filha e meu neto!". Ali estava a
razão do sorriso mais forte quando eu disse onde eu trabalhava. Ela só não me
revelou isso. Sem sequer imaginar, eu estava construindo uma história justo com
a filha de uma amiga por quem tenho muito carinho; e ela pareceu perceber essa
atmosfera de mistério, e entrou na onda. Por eu ser péssima fisionomista, não
reconheci o Bernard, quem já tinha visto em fotos de uma viagem dele e da avó à
Finlândia, lugar que eu disse à Maria que sonho conhecer (pois tenho uma ligação
profunda), e pedi que ela e Lauro, nosso amigo, fossem junto. "Vou ter de ir
à Finlândia de novo?!", ela disse às gargalhadas. O sorriso de Raquel se
parece muito com o da mãe.
Meu sobrenome é Guerra,
e Maria é da Paz. Quando nos conhecemos na empresa, eu disse "sou Guerra, mas
sou da Paz". E ela disse "comigo é justamente o contrário, sou da
Paz, mas sou uma fera". Rimos bastante. Daí vi que seu sobrenome é
Drummond, e falei "mas você tem sobrenome de poeta, tem que ter a Alma
Zen". Foi quando ela me revelou não ser à toa: ela é sobrinha-neta de Carlos
Drummond de Andrade... Choqueeeeeei!!!... Eu estava diante de uma legítima
descendente de poeta. Era fascinante. Era viver na realidade uma ficção tão
perfeita que eu nem ousei fabricar.
Eu sou poeta. A Moça da Bicicleta é
descendente de um poeta, e filha de uma amiga que, antes mesmo de saber que era
uma Drummond, eu já havia aprendido a gostar. Que nada é por acaso, isso há
muito eu já sabia, mas há certas conexões que ainda conseguem me surpreender.
Com certeza, a partir de amanhã, quando Raquel passar por mim, alguns silêncios
serão quebrados. Vamos acenar, nos dizer "olá!", possivelmente dizer nossos
nomes, mas como ela vai continuar me ultrapassando e chegando antes de mim, as
fantasias vão seguir a passear por alguns metros, fazer algumas trocas, e voltar
pra mim, trazendo sempre uma nova página. Vou continuar desejando a Paz a quem
já a tem desde o ventre, não importa, pois Paz e Poesia nunca são
demais.
O poetinha Vinicius de Moraes disse que
"a Vida, amigo, é a Arte do Encontro, embora haja tanto desencontro pela
vida", e eu sigo dizendo que "se a Vida não é a mais pura e imensurável
Poesia Concreta, eu sinceramente não sei, e sequer imagino o que ela possa ser".
Maria
Eduarda Novaes