domingo, 15 de maio de 2016

O dia em que a Humanidade conheceu sua biógrafa, Nise da Silveira

(ATENÇÃO: contém Spoiler)

Nos últimos dias, um conflito me ditou a rotina... Acompanhar os trabalhos de Glória Pires sempre foi uma obrigação prazerosa (ou um prazer obrigatório, que seja, tanto faz!), mas Nise - O Coração da Loucura seria pra mim algo não restrito à ficção, e sim pessoal e doloroso além da conta. Só que aprendi que os medos existem para serem enfrentados, porque é daí que vêm nossas melhores recompensas e os maiores aprendizados. Dito e feito!

Primeiramente, o nome já responde por mais da metade de seu conteúdo. Chamá-lo de Coração da Loucura é esclarecer logo de saída que Loucura nunca foi sinônimo nem de maldade, nem muito menos de alienação. Coração é a casa elucidativa do Amor e dos Sentimentos - que também, estes, nunca foram antônimo de Razão, portanto, conceitualmente falando, a Loucura é tão somente um modo divergente do que a Sanidade se vale para expressar as tantas Razões que nos compõem. É tão somente um outro idioma, que poucos são capazes de interpretar e, portanto, estabelecer um diálogo.

Após toda essa antecipação da temática dada pelo título, a primeira e a segunda cenas, sozinhas, tratam de entregar todo o resto. Em plano fechado, vemos os portões do Hospital Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro/RJ, no ano de 1944. É uma estrutura visivelmente precária a refletir com precisão o abandono e o descaso que residem e resistem atrás dele. É quando Nise da Silveira, médica alagoana, chega para seu primeiro dia de trabalho após sair da prisão onde ficou por 7 anos, denunciada por "prática de comunismo" porque possuía livros de Marx em casa. Ela bate no portão pra se anunciar. Sem sucesso, bate de novo mais forte. Ainda ignorada, bate com intensidade progressiva até finalmente ser atendida e levada ao congresso que acontecia ali. Já se via tratar-se de uma mulher que se impõe e não desiste facilmente. Na cena seguinte, vemos Nise ser encarada por todos com frieza e reprovação ao entrar no evento acadêmico, já em andamento; e a razão para tal era bem simples: ela era a única mulher ali. Ao ser apresentada às técnicas de lobotomia e eletrochoque, Nise se chocou e se recusou a aplicá-las. A partir dali, estava claro: veríamos a narrativa de uma mulher que teve a ousadia de enfrentar Homens e Paradigmas para tratar as enfermidades mentais não mais pelo castigo físico, e sim pelo afagar da alma... E foi justamente o castigo que recebeu pela insubordinação a ferramenta que tanto precisava pra realizar o que propôs: chefiar o então sucateado e desacreditado STO - Setor de Terapêutica ocupacional. 


Nomes, Histórias, Desejos, Vontades, Murmurações indecifráveis... Nise passa a "observar e ouvir", dando espaço e liberdade a cada um dos seus "clientes" - como chama os enfermos, pois "pacientes" devem ser ela e sua equipe no trato com aqueles para os quais estão prestando um serviço. É a partir daí que a médica capaz de tirar do confinamento Lúcio (magistralmente interpretado por Roney Villela), considerado perigoso e irrecuperável; e que improvisa uma bola usando o pé de uma de suas meias para interagir com aqueles que até então eram desprovidos de atenção mínima; começa a mudar não apenas a vida de Lúcio e de Carlinhos (Júlio Adrião), Adelina (Simone Mazzer), Emidgio (Carlos Jaborandy), Rafael (Bernardo Marinho) e Fernando (Fabrício Boliveira), mas também da própria equipe. Tendo inicialmente apenas o apoio da enfermeira Ivone (Roberta Rodrigues), ela vê o enfermeiro Lima (Augusto Madeira) passar de um brutamontes violento - que organizava confrontos entre os doentes para fazer apostas com colegas - a um real colaborador da terapêutica. Além dele, Nise arrebanhou o apoio substancial do médico Almir (Felipe Rocha), que, interessado em artes plásticas, propõe usar a pintura como atividade, e leva para estagiar no local a amiga Marta (Georgiana Góes), estudante de artes, que se torna peça importante na recuperação de um dos pacientes. 

De pintura à escultura, passando pela música e também pelo uso de animais, os resultados vão aparecendo; e com eles, aparecem também os conflitos... Os enfrentamentos entre Nise e a equipe do hospital são o que dá o tom da metade final do filme, e onde as interpretações já marcantes atingem seus ápices. Humanidade é exatamente o que vemos nesse filme do começo ao fim, muito bem diluída e espalhada no roteiro, feito a 7 mãos; no elenco indefectível; na trilha sonora e na fotografia atenuantes; e na direção absolutamente precisa (de precisão, e de necessária) de Roberto Berliner, conhecido documentarista de A Pessoa é para o que Nasce e Hebert de perto. Humanidade é exatamente o que suaviza toda a dor e a angústia que a história carrega, imergindo o espectador completamente na trama sem deixá-lo experienciar o lado ruim mais profundamente a ponto de sofrer junto. Ao contrário. Encontra-se, sem muita dificuldade, a beleza e até mesmo o riso passeando pelo espaço. Nada nessa película está dissonante. E Glória Pires, que pensei que depois de Flores Raras (leia a crítica deste filme aqui) não pudesse se superar, me fez pintar um novo quadro seu, numa aula especial que, felizmente, decidi encarar. Eis a recompensa, e o aprendizado! E aqui recomendo que todos corram atrás do mesmo prêmio. 

Nise - O Coração da Loucura é mais uma prova inconteste de que a Arte é mesmo a única capaz de contar qualquer história, posto que não há barreira idiomática, cultural ou intelectual que ela não seja capaz de transpor. E a lição que fica é, de longe, a coisa mais importante aqui: enfim se explicou que, linguagens à parte, a real diferença entre a Sanidade e a Loucura é tão somente o Olhar de Amor que cada uma é capaz de emanar, e absorver.

Maria Eduarda Novaes