~O Plagiador de Pensamentos~
Era mais um dia de acasos programados. Fazia muito frio lá fora, e "já que os anjos não podem voar, não me arriscarei a sair", dizia ele. Em dias de temperatura abaixo de 10ºC, era imprudente estar longe do fogo da lareira e das grades das janelas; e aquele que saísse, não poderia chamar de fatalidade o que lhe viesse a acontecer. Mas enquanto a lareira o aquecia, e as grades o mantinham a salvo, ele não descansava a mente. Era o dia mais propício para se plagiar pensamentos. As pessoas geralmente não sabem que estão desprotegidas, e seguem com o cérebro a mil, emanando ideias, conceitos e, sobretudo, segredos; mas sem os arranjos dos arcanjos a abafar os ouvidos alheios, ao menos ele se tornava capaz de tudo ouvir. Assim, uma ideia genial passava a ser sua, um conselho qualquer lhe caía como luva, um xingamento forte o atingia em cheio, e era fácil descobrir quem de fato gostava dele, e quem apenas mentia a torto e a direito. Era um superpoder do qual ele se orgulhava, mas não alardeava por razões fortemente óbvias.
Por algum tempo, foi difícil filtrar as tantas coisas que chegavam de uma só vez. E ainda era preciso educar seus pensamentos e não deixá-los se misturarem aos recebidos, posto que tinham, apenas, de maquiar e moldar os novos para então lhe pertencerem legitimamente. Mas dominadas estas habilidades, o desejo principal fora o de ajudar a polícia a capturar os bandidos que agiam nas redondezas, ao desvendar seus crimes. Só que aquela era uma comunidade de pecados leves. Ele mesmo sabia que sua invasão de intimidade era a maior transgressão a qual o vilarejo estava exposto. Uma bênção e uma maldição que jaziam no mesmo lugar.
Antes de dormir, escrevia todos os pensamentos que lembrava em um caderninho antigo, de capa de couro, feito por seu pai; dando seu toque final, criando os próprios segredos com cada uma das palavras que roubara de cada um daqueles silêncios. Assim, ele garantia, "aquele que achar este tesouro, jamais achará que este tesouro é seu".
Até que em uma noite de verão, revendo seu diário de cabeceira, percebeu que a senhora da esquina da rua quatro, aquela sempre disposta a ficar exposta a todos os perigos, todos os dias, nunca havia emanado um pensamento sequer. Será que ela em nada pensava, ou será que só ela era protegida mesmo em tempestades gélidas? Na nevasca seguinte, ele amanheceu sem ouvir som algum. Se desesperou. Pensou no que poderia ter feito de errado para perder seu dom. E descobriu que a resposta era justamente o que ele NÃO fez: ele não ouviu a moça, e sequer havia se perguntado o porquê.
Ele vestiu-se da esperança de que naquele dia em questão os anjos estivessem voando por ali, e por isso ele não ouvia nada. E foi confiando nisso que ele partiu pelas ruas em direção à moça exposta, pois fosse qual fosse a razão do silêncio, nela estava a resposta. Chegando perto, só um cobertor preto sob outro cobertor branco se destacava. Nenhum som, nenhum movimento.
_ Não a descubra, senão ela morre, tal como eu!
Aquele não era um pensamento. Era um sussurro trêmulo que vinha de debaixo do banco. Era um grito de socorro de quem estava descoberto de corpo e espírito, mas que sobrevivia graças a um coração quente. Diante de sua lareira, aquele pobre homem mal se movia, e dava-lhe a certeza de ser mesmo incapaz de pensar.
Sem suas fontes, o plagiador se consumia, exausto, em seu próprio juízo. Por que parou de ouvir? E seria capaz de voltar a ouvir algum dia?
_ Obrigado por salvar minha vida! O Senhor é um Anjo!
...E foi assim que ele entendeu que só ouviu de verdade no dia em que parou de ouvir.