quinta-feira, 4 de maio de 2017

Hoje, eu fiz um aborto!


A cada manhã, a mesma rotina: eu te gestava, te alimentava, te sentia mexer em mim, e, assim, mexer comigo... Te levava pro meu banho, depois à praia, e dirigia meu carro com a consciência de que, agora, era você quem estava dirigindo a minha Vida. Eu passei a voar onde antes mal caminhava, pois a cada passo era uma queda livre. Porque você me afagava, passei a respirar onde antes me afogava; e meu sono enfim me fez dormir após aquele pesadelo contínuo que não me deixava acordar. E enquanto eu ia me doendo aos poucos, percebia você se doando; e via o tempo passar e você crescer a olhos vistos... Até que chegou o dia de você chegar por completo. Era o dia de nascer. Era o dia de eu me doer como nunca, me contorcer, quase me arrepender, mas ser recompensada por ver seu rosto, sentir sua carne, e te alimentar de tantas outras formas. Mas eu só ia me contorcendo, me arrependendo, quase agonizando, e você não chegava... Eu já tinha o espaço arrumado pra te receber, a comida pronta, ouvia e sentia seus sinais, mas o tempo ia passando e ao invés de ficar mais perto, tudo ficava mais longe... Fui pedir ajuda! No caminho, virando a esquina, esbarrei em outra barriga d´água, como a minha, pendurada em um rosto amargo, sofrido, a segundos de sucumbir... Um espelho!!! E enquanto o encarava, uns me gritavam "é verme", outros diziam "isso não é nada, não". Até que o espelho quebrou, atingido por uma pedra, o que me tirou do transe. "Ei, moça, isso é uma Ilusão", ouvia uma voz turva atrás de mim. Me virei. "Já gestei várias", ela continuou, "e elas não chegam, elas partem". Perguntei se elas partiam de nós ou se nos partiam. E só de perguntar, eu mesma respondi. E foi ali, no meio da rua, ao meio-dia de outono, com as folhas fazendo cama para mim, que fiz meu primeiro aborto afetivo!

...E a cada manhã, a mesma rotina: eu me gesto, me alimento, me mexo, me limpo, dirijo tudo, voo alto, respiro fundo, durmo e acordo comigo, e cresço por inteiro a olhos vistos!

Me doí, mas me curei. E nunca mais precisei fazer um aborto...


Maria Eduarda Novaes